A urgência da necessidade é o embrião dos espíritos
inquietos. Não há beleza na poesia que não urge, só há falácia de um escritor
que busca o desconforto, pois o desgraçado sabe que sem essa instigação, sua
obra não existe.
Herdei pouca coisa da minha mãe, talvez a repulsa a algumas
pessoas, mas nada tão estimado quanto a obra completa do “Graça” (como diria
Xico Sá), o eminente Graciliano Ramos. Dentre esse rico compêndio do Graça,
encontrei uma compilação de textos escritos para um jornal de Alagoas. O livro
chama-se “Linhas Tortas”, tem uma grande didática que deveria ser ensinada nas
faculdades de jornalismo. Uma das crônicas do hebdomadário fazia uma crítica
feroz aos escritores europeus (guardo Balzac na memória) pela ininterrupta
construção de espíritos complicados, distantes do homem comum, ininteligíveis e
quase sempre inquietos sem razão alguma.
Mas esse Graça era uma cabra da peste mesmo! Como bom
materialista que sou, compartilho da mesma intolerância do nosso mestre. Há
obras que me fazem perquirir perseverantemente em busca de um significado, mas
escavo até o último grão e acabo frustrado por não encontrar nada.
Sou vil, gosto do material e nele encontro minha alma. Minha
predileção é pela rotina, o hábito, as necessidades fisiológicas, as paredes
que me escondem do mundo e o chão que suporta meu peso (que não é muito)
pacientemente, pois um dia haverá vingança e desse, que hoje piso, serei mais
um subalterno enterrado.
Graciliano era do nordeste, sabia do que falava: aquele povo
é o abstrato encarnado pelo sofrimento. Lá não há inquietação de barriga cheia:
o homem sabe o valor e o fado da existência e não anda por aí destilando
falsidade para vender best-sellers ou agradar gente “pós-moderna” que acha que
vivemos numa crise psicológica.
Até na arte tem gente falando em inquietação, talvez seja
uma forma de marketing pessoal: é mais chique sentir fome de criação. Conheço
esse processo muito bem e posso cravar: o deleite pela arte só vem depois de
muito metodismo diário, por isso que tanta gente fica no meio do caminho, é uma
chatice que praticamos como quem sorri ao chefe para não ser demitido. Após um
tempo razoável, adquirimos o vício pelo ritual, aí sim, temos a necessidade de
entrar em contato com o processo artístico. É uma questão de praxe.
Nem o espírito é capaz de emanar beleza! O concreto nos
mostra o que é agonia, se duvida: fique três dias sem comer. É essa a urgência
que idolatro: sem ela não há coração.
Sou um boêmio: preciso do meu cigarro, minha cerveja, meu
whisky e um bar aconchegante. Também amo minha casa, meu sofá, minha cama,
minha TV, meus discos, meus livros, meu violão e minha privada. Qualquer
alteração nessa ordem me causa um grande distúrbio psíquico. Preciso das coisas
sempre no mesmo lugar. Também adoro gastronomia: sem comida a vida seria um
erro! Pereço no meu hedonismo todos os dias, mas é isso que quero: envelhecer
aquiescendo a sedução dos pequenos prazeres. Não deve ser à toa que meu último
sobrenome é Prazeres, a única coisa que herdei do meu pai.
Enfim, minha vida sem tudo isso seria infernal e me daria
motivos de sobra para ter um espírito inquieto.
Já sei que minha ontologia como escritor não é tão insigne
quanto a dos franceses. Perdoem-me se meu estro depende de fracassos pessoais,
mas assim sou: primeiro perco a mulher, o emprego, o amigo, o dinheiro e a
janta, depois é possível auferir uma leve impressão da vida. Não recebo
entidades, não vejo gente morta e não possuo estrutura ontológica fora do
estado físico das coisas.
Não posso finalizar sem falar do meu humor preferido: o mau.
Da mesma forma que não vejo razões para inquietação, também não as vejo para
felicidade. Essa imensidão de vazio concreto das coisas me incutiu o pecado da
preguiça. Às vezes não tenho ânimo nem pra acordar e ver a cara de bunda desse
mundo.