terça-feira, 30 de julho de 2013

Atavismo: Meu Pai e Minha Mãe

A urgência da necessidade é o embrião dos espíritos inquietos. Não há beleza na poesia que não urge, só há falácia de um escritor que busca o desconforto, pois o desgraçado sabe que sem essa instigação, sua obra não existe.
Herdei pouca coisa da minha mãe, talvez a repulsa a algumas pessoas, mas nada tão estimado quanto a obra completa do “Graça” (como diria Xico Sá), o eminente Graciliano Ramos. Dentre esse rico compêndio do Graça, encontrei uma compilação de textos escritos para um jornal de Alagoas. O livro chama-se “Linhas Tortas”, tem uma grande didática que deveria ser ensinada nas faculdades de jornalismo. Uma das crônicas do hebdomadário fazia uma crítica feroz aos escritores europeus (guardo Balzac na memória) pela ininterrupta construção de espíritos complicados, distantes do homem comum, ininteligíveis e quase sempre inquietos sem razão alguma.
Mas esse Graça era uma cabra da peste mesmo! Como bom materialista que sou, compartilho da mesma intolerância do nosso mestre. Há obras que me fazem perquirir perseverantemente em busca de um significado, mas escavo até o último grão e acabo frustrado por não encontrar nada.
Sou vil, gosto do material e nele encontro minha alma. Minha predileção é pela rotina, o hábito, as necessidades fisiológicas, as paredes que me escondem do mundo e o chão que suporta meu peso (que não é muito) pacientemente, pois um dia haverá vingança e desse, que hoje piso, serei mais um subalterno enterrado.
Graciliano era do nordeste, sabia do que falava: aquele povo é o abstrato encarnado pelo sofrimento. Lá não há inquietação de barriga cheia: o homem sabe o valor e o fado da existência e não anda por aí destilando falsidade para vender best-sellers ou agradar gente “pós-moderna” que acha que vivemos numa crise psicológica. 
Até na arte tem gente falando em inquietação, talvez seja uma forma de marketing pessoal: é mais chique sentir fome de criação. Conheço esse processo muito bem e posso cravar: o deleite pela arte só vem depois de muito metodismo diário, por isso que tanta gente fica no meio do caminho, é uma chatice que praticamos como quem sorri ao chefe para não ser demitido. Após um tempo razoável, adquirimos o vício pelo ritual, aí sim, temos a necessidade de entrar em contato com o processo artístico. É uma questão de praxe.    
Nem o espírito é capaz de emanar beleza! O concreto nos mostra o que é agonia, se duvida: fique três dias sem comer. É essa a urgência que idolatro: sem ela não há coração.
Sou um boêmio: preciso do meu cigarro, minha cerveja, meu whisky e um bar aconchegante. Também amo minha casa, meu sofá, minha cama, minha TV, meus discos, meus livros, meu violão e minha privada. Qualquer alteração nessa ordem me causa um grande distúrbio psíquico. Preciso das coisas sempre no mesmo lugar. Também adoro gastronomia: sem comida a vida seria um erro! Pereço no meu hedonismo todos os dias, mas é isso que quero: envelhecer aquiescendo a sedução dos pequenos prazeres. Não deve ser à toa que meu último sobrenome é Prazeres, a única coisa que herdei do meu pai.
Enfim, minha vida sem tudo isso seria infernal e me daria motivos de sobra para ter um espírito inquieto.
Já sei que minha ontologia como escritor não é tão insigne quanto a dos franceses. Perdoem-me se meu estro depende de fracassos pessoais, mas assim sou: primeiro perco a mulher, o emprego, o amigo, o dinheiro e a janta, depois é possível auferir uma leve impressão da vida. Não recebo entidades, não vejo gente morta e não possuo estrutura ontológica fora do estado físico das coisas.    

Não posso finalizar sem falar do meu humor preferido: o mau. Da mesma forma que não vejo razões para inquietação, também não as vejo para felicidade. Essa imensidão de vazio concreto das coisas me incutiu o pecado da preguiça. Às vezes não tenho ânimo nem pra acordar e ver a cara de bunda desse mundo. 

segunda-feira, 29 de julho de 2013

A Disfonia de Deus num Mundo de Caos

A tradição religiosa pode ser um espelho: para vermos nosso reflexo basta tirar a política da frente, não há ciência humana que vá tão ao fundo da psicologia e da filosofia do indivíduo. Se Deus está em tudo, inclusive em mim, minha moral sai do discurso público e entra no que há de mais visceral na alma.
O que me seduz nas religiões abraâmicas é o constante diálogo com o interno. É demasiado arrogante achar que todos os problemas estão fora de nós, seres tão sujos. É isso o que a bíblia quis dizer com a humildade dos eleitos. Só eles verão a Deus.
Antes de tudo, é pertinente deixar claro que não pratico a religião liturgicamente e nem sinto tal necessidade. Não possuo nenhum tipo de ritual de conexão com o transcendental e nem peço perdão por minhas anátemas antes de dormir.
Meu encanto pela religião emana de uma sensualidade filosófica que me instigou a pensar na problemática depois da leitura de verdadeiros “hereges”.
A impressão pode causar um mal-estar nos adeptos do proselitismo racional, mas a tradição religiosa, especialmente a cristã, é o elemento intertextual do que há de mais sofisticado na história da literatura ocidental.   
A filosofia cristã entende o ser humano na sua exatidão: como ser interno, que precisa, antes de tudo, encontrar a ordem que há no espírito, contrariamente ao sectarismo ideológico, esse nos lega que o caráter do homem pode ser esculpido no meio social.
Autores como Shakespeare, Goethe, Proust, James Joyce, dentre tantos outros, Dostoiévski talvez seja o mais estudado, dialogam integralmente utilizando a linguagem dos sentimentos, impulsos e tomada de decisões depois de muito conflito moral. Há uma correlação indissociável com a bíblia e suas lições éticas, mas não de forma didática, pois, aqui, na literatura, o interesse é arrancar as almas e não construí-las.
Pensar a ideia de Deus pode alienar? Evidente que sim, mas imaginá-lo com o “coração aberto” (termo cristão) pode ser muito pedagógico e até mesmo um exercício no caminho da depressão profunda. Deus é tudo, sem exceções! Não adianta justificá-lo ou tentar a insurreição: você não passa de pó e sua arrogância é a pressuposição, sustentada na idolatria, de que há uma auto-suficiência. Deus é muito grande para caber na nossa cabeça: estamos habituados a medidas, o infinito é uma linguagem eternamente incognoscível a seres que só conhecem o tempo e o espaço de suas existências, mas quando sentimos que Deus é tudo isso, caímos de joelho diante de um ser tirânico que, no fundo, também é nossa fisiologia e nosso pensamento.
Um efeito enviesado da obra dostoiévskiana é a interpretação de que o nosso gênio de São Petersburgo, impôs um questionamento que deixa a ciência racional numa sinuca de bico: “Se Deus não existe, tudo é possível”? Já descobriremos por que as aspas não abrangem a interrogação. Essa frase é de uma reflexão sem precedente na história da literatura universal, pelo menos não de forma tão incisiva. Afinal, sabemos que uma legitimação suprema é a base da ética. Parece que o ser humano nunca foi autoconfiante ao ponto de achar que as coisas que dizemos e pensamos é verdade, então, corremos sempre atrás de mestres e messias, idolatramos quem nos mostra por onde caminhar e precisamos do parâmetro “certo” e “errado”.
Raskolnikóv, personagem de “Crime e Castigo”, ou Ivan Karamazov, personagem de “Irmãos Karamazov”, eram daqueles ímpios que não acreditam nem na própria sombra. Raskolnikóv santificava Napoleão por seus feitos que beiravam o desumano e os tornava grande e destemido. O jovem agoniado se viu compelido a praticar um crime como prova de seu potencial ao sucesso e como o primeiro passo: que seria derrubar a parede da moral que separa os reis da gentalha. O que nosso herói não esperava era a culpa cortante que atravessara sua alma. Enfim, Raskolnikóv carregou o ônus da prova: a prova de que nem tudo é possível. Se o próprio Dostoiévski disse: “Se Deus não existe, tudo é possível”, deparamos com o espanto imediato, esse foi motivo da minha interrogação fora das aspas, afinal: tudo é possível? Como explicar o impossível? Deus não é uma ideia descabida, é algo a ser pensado sem brincadeiras e com um olhar cético ao nosso próprio ceticismo. Não sou agnóstico, mas admito que não consigo pensar em Deus.
Como diria o utopista Thomas Morus: “há homens que não acreditam em Deus pelo medo do pecado que lhes é constante”.


Enfim amigos, menos Focault e mais Eclesiastes, menos Marx e mais Dostoiévski! 

domingo, 28 de julho de 2013

Mr and Mrs Smith: um casal didático

Famílias não precisam de diálogo e amizades não se sustentam à base de afabilidade: esse deveria ser o princípio irrefutável das boas e saudáveis relações. Há até um valor, na tradição religiosa, que diz que não podemos “semear a discórdia” no seio da instituição família. Essa afirmação é um verdadeiro axioma! Porém, o único jeito de não incorrermos a discórdia é instalar o silêncio como o que há de mais belo no convívio entre pais, filhos e irmãos. A fórmula não traz nada de mais rebuscado: para que não haja antagonismo, basta não discutir. A democracia definitivamente não é um manual seguro das famílias felizes. Talvez, isso decorra da espontaneidade dessa união, afinal, ninguém escolhe berço, somos compelidos a fazer parte de um laço de sangue e não adianta renegá-lo ou se revoltar. Nas relações mais superficiais, embasadas no gosto (aquelas do grupo de amigos), nossa moral dispõe o poder de tomar decisões utilitaristas, ou seja, só é meu amigo quem eu quero e ponto final. Evidentemente, há uma busca pelo que é parecido conosco, e, nesse âmbito, aprendemos o amor ao diferente e o ódio ao que é nossa imagem e semelhança. O diferente causa desconforto e o nosso espelho só traz tédio.        
Minha maior destreza no convívio é a observação. Já falei aqui que sou exímio observador (sem falsa modéstia, essa é a maior virtude dos imbecis) e já que tenho essa prerrogativa, aprecio cada movimento como se fosse uma obra de Renoir. Essas minhas impressões não são apenas jactâncias, antes disso, as extraio de um olhar tragicômico da rotina, mas não sem antes muito exercício para me poupar de equívocos tolos. Apesar disso, não quero dar exemplos empíricos do que escrevo: você que tire o traseiro da cadeira e vá ver se o que digo não é fidedigno.
Enfim, dizia eu que o diferente é desconfortável. Adoramos esse pequeno caos, e a solidez do elo entre amigos só se constrói por ele. Amigos precisam: discordar, brigar, trocar socos algumas vezes e pedir perdão. Quando é com nossa mãe, sabemos que a luta já começou perdida, por isso nos resignamos: quantas vezes não “deixamos pra lá” só para não termos a pachorra de eclodir um conflito mais sério? Isso é o amor no ar: não há nada mais bonito no âmbito dessa relação do que uma mesa de jantar com pessoas que não se falam: ali há paz, há união e não sobra uma palavrinha em nome da discórdia. Bela família cristã!
No fundo só queremos ter motivos para odiar, e, é aí que caímos como quem se joga de um prédio se estatelando na superfície, no campo da amizade e das paixões.
Uma hora (o cotidiano sempre nos mostra) vemos o esqueleto revestido de carne de nossos heróis. Espanto! Eles são feitos da mesma matéria que meus pais? Sim, e pior: não serão submissos só para não causar ruptura na corrente amistosa. Pronto: agora o bate boca fará parte da amizade e será tão aglutinador quanto o silêncio em família. Sem troca de farpas a relação fica insossa e perde graça, causando um afastamento natural das partes.
Um filme interessante do cinema mainstream é o longa do diretor Doug Liman: "Mr and Mrs Smith". Um roteiro hollywoodiano de ação, mas que mostra um olhar perspicaz acerca de um casamento incipiente. No começo, o casal, interpretado por Brad Pitt e Angelina Jolie, vive frequentando terapia por não suportar a chatice do American Way of Life, quer dizer: ter uma casa própria, um trabalho sólido e viver na mais perfeita harmonia do lar. Quando a separação precoce se mostra iminente, ambos descobrem a identidade secreta do par (essa parte não importa, é uma daquelas idiotices, tipo: pular de helicópteros dando tiro). Em meio a um tiroteio, o casal se reencontra e reacende a paixão de outrora.
Esse filme não deve nada a uma terapia de casal. O importante é vermos que a relação entre amigos, namorados e casais incipientes, precisa de um elemento explosivo que se evade da esfera racional.  
Nesse mercado que tudo vende e tudo passa por cima, têm gente querendo mercantilizar fórmula de bolo para pais, filhos e amigos. O pior é que há pessoas dispostas a comprar. É a velha história: “vamos ser amigos felizes”, “amigos não mentem uns para os outros”, “é hora de discutir sexo com nossos pais”, “meu pai é autoritário e não me escuta”, blá, blá, blá...  

Prefiro a tempestade da rua e a calmaria do meu sofá.

sábado, 27 de julho de 2013

Mendigando Ar

Não importa qual a resolução: o alívio de um ser ininterruptamente agoniado só chega com a resposta definitiva. Esperar pode matar ou manter o pulmão respirando até o golpe de misericórdia, mas é melhor sofrê-lo do que aguardá-lo e perecer no envelhecimento.
Desconfio do meu niilismo. Parece que há uma transcendência que escreve minha vida à base do: “aprenda e faça”. Isso não é auto-ajuda, antes disso, é autodestruição. Aprendi na escola mais trágica de todas, tive algumas aulas com Dostoiévski, Kafka, Goethe e Tolstoi, e esse último me legou a seguinte frase: “Doentes são todos os que nos outros vêem sintomas de loucura quando não têm um espelho em que possam ver o que lhes vai dentro da alma”. “O espelho da alma”, frase bela, mas nunca imaginei que veria um reflexo tão integral da minha própria imagem.
Esse ano, conheci a fase do “faça”, e o que fiz? Tudo errado! Apaixonei-me como em Tolstoi, quis ser desumano como em Dostoiévski e me tornei um angustiado a procura de saída, como em Kafka.
Sinto que nunca vou contemplar algo de pleno, nem mesmo o fracasso; viverei sempre inebriado pela possibilidade quimérica do futuro, isso prensa meu corpo todos os dias.
Não trago nenhum espírito inquieto, sou apenas uma peça do cotidiano, e, por conhecer as pessoas pouco, a timidez esmaga minhas pretensões mais fúteis e faz com que cresça um ódio ao que é de carne e osso, mesclado a um medo, por não saber com quem realmente falo.
Os sorrisos parecem irônicos, as palavras não vêm de dentro, os olhares revelam pensamentos vagos, impertinentes e inexpressáveis em público. Tudo me soa bazófia, impostura, e ninguém me poupa dessas falsidades: da minha mãe ao meu melhor amigo, passando pelo meu chefe e pela balconista da lanchonete. Digam-me a verdade, eu não aguento mais!
O ar do prédio onde trabalho está contaminado pela ironia. Vejo a cara dos meus superiores hierárquicos e me pergunto se eles descobriram meus pequenos crimes, se sim, porque não me demitem por justa causa logo? Faço uma entrevista de emprego, o selecionador fica de ligar se a resposta for a aprovação, mas o telefone não toca, me pergunto se está quebrado, se perdi a ligação ou se realmente fui rejeitado por não me enquadrar no perfil da vaga? Agora chego em casa, minha mãe cochicha pelos cantos, abaixa o tom de voz. Um ex-grande amigo mentiu durante seis meses em troca de um interesse pessoal, mas o pior: não admite que o fez.
Talvez a bomba mostre sua face, como tantas vezes já aconteceu, e esses desgraçados destilem todo o veneno que há nas suas cabeças. Eles não medem esforços para me destruir, quando decidem se manifestar, jogam absolutamente tudo o que pode me ferir sobre a mesa.
Há horas que me vejo em vantagem, afinal, poucos sabem qual é o meu “calcanhar de Aquiles”. Sou exímio observador, tão covarde que jamais me dou por vencido, diante da vida sim, pois sei que nessa briga já fui nocauteado, mas diante do ser humano nunca!
Talvez, tomar chuva gelada suportando um frio de dois graus, duas semanas depois de uma pneumonia grave, tenha me tornado mais intrépido. Agora é minha vez de olhar nos seus olhos e mostrar que você não passa de pó e é tão fraco quanto eu.
Já aceitei o fado: primeiro ter, legitimar, conquistar e jogar na cara de todo mundo; depois eu renego todo esse lixo. 

Expus minha alma na prateleira, esse é o preço. Mefistófeles não é nenhum demônio transmutado da carne de um cão. Ele é onipresente: oferta a glória e quando pensamos alcança-la já estamos sobre a superfície ardente do inferno! 
Só preciso respirar: minha falta de fé sufoca meu espírito, minha falta de responsabilidade destrói minha fisiologia. Aqui no meu mundo, oxigênio vale ouro.

terça-feira, 23 de julho de 2013

A Beleza do Sangue sem Amor

Nunca vi a beleza do bem, aliás, nunca vi bondade. Eu não apostaria na sua inexistência: se tanta gente se acha virtuosa, deve haver uma antítese do mal que desconheço. Talvez, meu espírito de porco esteja com uma venda sobre os olhos da alma. E o amor? Esse é um dos maiores embusteiros, e pior: sempre anda por aí com a estética do sublime. Amar é uma missão árdua, repare que os “semi-deuses” (como diria Fernando Pessoa), nunca têm estômago para falar das qualidades de outrem, mas quando o papo é se auto-adjetivar, os famigerados por Pessoa, são verdadeiros profissionais. 
Vejamos: recolha todas as suas memórias nas quais uma pessoa exaltava as qualidades de um terceiro (a mãe não vale). São ínfimas, não? E você, qual a última vez que elogiou alguém (nem pense em ídolos que você não conhece)? Agora faça o mesmo exercício, porém no sentido inverso. Sem espanto! Odiar é muito mais fácil e aprazível, o ódio aglutina os indivíduos, cria grupos, sociedades e até mesmo o amor. Não me causaria espécie, descobrir que o amor não passa de uma justificativa do ódio. Parece-me que a repulsa, seguida da vontade de destruir, chega primeiro do que o afeto a determinado objeto. Exemplo: palestinos mais odeiam o Estado de Israel e seu povo do que têm amor à própria pátria, e vice-versa.
O motivo é o nosso maior guia da vida moral racional, a partir da hora em que o possuímos, temos o endosso do espírito para praticar qualquer barbárie. Será apenas uma questão de legítima defesa, ou será uma vontade latente e reprimida de destroçar tudo o que estiver no nosso caminho? A segunda alternativa me parece mais plausível, não podemos negar que somos animais, e, como tal, sedentos por liberação de impulsos nefastos.
O nosso mundo têm construído, inconscientemente, mecanismos terapêuticos para dar vazão ao nosso instinto destruidor. Um desses mecanismos se tornou uma verdadeira vitrine da imbecilidade humana: as academias de ginástica e suas “artes” marciais. Outrora, o excepcional filósofo, Leandro Karnal, refletiu em público sobre o tema (olhem só a provocação): “numa sociedade normal, considerando nossos próprios padrões de normalidade, pessoas que sentem prazer vendo dois caras se socando, seriam levadas imediatamente a um tratamento psiquiátrico, mas, ao invés disso, compramos ingressos e idolatramos o espetáculo de horror”. Acrescento, não só pagamos, mas também queremos fazer parte da selvageria. Já ouvi uma série de pessoas, até mesmo próximas, falarem que vão à academia com o intuito de descarregar as tensões cotidianas. Acho que já se foi o tempo do yoga ou da meditação no deserto do Atacama, o negócio agora é enfiar a porrada, até porque, “guardá-la é pior” (como diriam os “especialistas” que aparecem nos jornais da Globo), “mas é necessário ter moderação”. 
Esse é o diagnóstico que me faz descartar a hipótese da legítima defesa. Felizes são aqueles que podem encontrar justificativas políticas e morais para os seus crimes. 
Essa reflexão eclodiu empiricamente, como quase todas que disponho aqui, afinal, sou um materialista e também amo o que é concreto. Nesse caso, ocorreu há mais ou menos um ano, quando eu voltava do trabalho de noite: eu, um simples transeunte na rua, fui ameaçado por um grupo de vagabundos (sim, vagabundos, odeio doenças sociais), porque um deles me pediu um cigarro e eu os ignorei, ou melhor, ainda me dei a pachorra de falar que não tinha. Permaneci caminhando, e um outro deles falou meia dúzia de palavrões e fez menção de correr na minha direção. Às vezes me espanto com o meu comportamento: continuei andando, frio como uma pedra de gelo, abri o portão e fui jantar.
Se naquele dia eu tivesse um calibre qualquer na cintura, aquele vagabundo teria tomado um banho de sangue, minha ética seria lavada com o dispositivo legal da legítima defesa; não haveria culpa, e pode até ser que ali, naquela rua, emergisse na minha alma uma sensação mais prazerosa do que cinco horas seguidas de ejaculação.     

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Eu e a Direita, Afinidade à Segunda Vista

Coitadismo x meritocracia, eis a questão. O primeiro causa a sensação de incapacidade, o segundo desafia o ser humano, mas como a maioria das pessoas são medíocres e invejosas, há uma predileção geral pelo igualitarismo grosseiro.
O quadro clínico não é nada animador: nosso tempo é um tempo de vítimas. Hoje o coitadismo é institucionalizado no sentido mais fidedigno da palavra. Sim, existem instituições legais de coitados, vulgarmente tratados como “minorias”. Tenho verídicas razões para acreditar no fato de que as “minorias”, juntas, formam a maioria absoluta: essa é a derradeira face de uma sociedade de imbecis, até porque, a democracia opera pela força numérica, sendo assim, os eternos sacos de pancada são parte majoritária do nosso tecido social. É espantoso, mas encontro o viés sadomasoquista do comportamento de um povo ideologicamente mimado.
Quem será que é privilegiado? Pergunta cascuda num contexto em que as vítimas são o “palheiro” e os privilegiados são a “agulha”. Então é melhor começar pelas vítimas e suas mais modernas griffes: crianças e o “Bullying”, gays e a “homofobia”, “afro descendentes”, ou outros grupos étnicos e o “racismo”, enfim, esses são os exemplos da prateleira, mas há uma gama enorme de outros.
Hoje, todo mundo anseia pelo direito jurídico de ser feliz, daqui a pouco, a felicidade será obrigatória e quem não compartilhá-la, será preso pelo crime de tristeza. Até os comerciais de ração prometem felicidade aos cachorros e gatos.
É crível que não há mais retorno, especialmente agora, em tempos de “nova classe média”. Estamos num relativo conforto, e o desconforto é a única forma de fazer o ser humano pensar sem brincadeiras de mau gosto.
As pessoas se auto-afirmam como: “éticas”, mas ainda assim: “felizes”. Agora eu me dou ao luxo de perguntar: como pode haver ética onde só há felicidade? A ética é um sistema de valores que opera de acordo com “bem” e “mal”, como diria a música: “se o bem e o mal existem você pode escolher...” Se existe só o bem, pode existir qualquer coisa nesse lugar, menos ética.
Sou muito digressivo e tenho egressos descontrolados de tema, mas essa é minha forma de escrever, porém, no caso desse ensaio, vou voltar à questão inicial.
Os coitados, muitas vezes podem ser “cotados” (perdão pelo trocadilho). Uma das maneiras de institucionalizar esses grupos é discriminá-los por meio de cotas (qualquer tipo delas), inserindo na cabeça das pessoas a idéia de que há uma “dívida histórica”, termo ridículo, afinal, a humanidade sempre caminhou na direção do contágio e da sobreposição de uma raça sobre outra, isso é o Darwinismo na sua mais didática amostra. Se construirmos esse senso de “dívida”, giramos num embate ad eternum, onde a humanidade nunca abandonará os seus “credores”, afinal, se estamos endividados, os coitados são nossos credores. 
Outro aspecto interessante, no caso das cotas universitárias sociais, é entendermos o papel da universidade pública. É comum escutarmos: “o aluno estuda em escola pública, e, no curso superior, acaba indo pra educação privada”. É esse o tipo de pensamento que distingue sociedades como as latino-americanas das anglo-saxônicas. Lá, a cultura é de meritocracia, olhar para frente. Aqui, olhar para o passado e o maldito coitadismo. Nos países capitalistas do primeiro mundo, há uma noção geral do papel da universidade pública (isso não exclui as privadas, que são maioria): que é o de gerar tecnologia e devolvê-la à sociedade, isso é retribuir os impostos que sustentam o mundo acadêmico, além do que, não é possível corrigir patologias sociais colocando, nas faculdades de ponta, meia dúzia de alunos de escola pública, negros ou não, por meio de cotas. Isso só mascara o problema, e pior: o legitima. A real fratura é a péssima condição da educação de base, e não adianta oferecer remédios paliativos depois de 10 ou 11 anos. Para que a academia possa produzir ciência útil à sociedade que a financiou, é necessário que os alunos sejam os melhores, independente de o cara ter vindo do Jardins, de Higienópolis ou da periferia de Osasco.
Coitados, aprendam de todas às vezes por nenhuma: a riqueza não é uma dádiva. O pensamento técnico burguês produziu o que há de mais avançado em matéria de economia. Ingenuidade ou má-fé? O que leva vocês a pensarem que a miséria não é a ordem natural das coisas? Talvez vocês pensem que no começo da humanidade, a vida era confortável e igualitária, mas eclodiu um certo grupinho de pessoas más, e usurpou todos os valores materiais em nome do privado.
A pobreza é a regra, temos que aprender como se produz valor, pedir esmolas não me parece a melhor solução.


Justiça social é oferta de emprego, o resto é puro Darwinismo. Chega de vítimas!

sábado, 20 de julho de 2013

A Ética da Cocaína e a Barbárie da Democracia

“Representação”, eis a palavra prática no exercício da democracia. É claro que na ordem etimológica, tão citada em artigos acadêmicos, podemos inferir que um sistema democrático é aquele no qual o povo detém o poder máximo. Teoricamente (e hipocritamente) o sistema político brasileiro opera dessa forma, mas a hipocrisia, nesse caso, é saudável: qualquer Estado que opera de acordo com a legitimidade democrática se torna uma máquina a serviço da barbárie, exemplos nos são abundantes.
O “Estado Democrático de Direito”, epíteto amado pelos doutrinadores jurídicos e operadores do direito, determina a aplicação jurídica e empírica da Democracia, um exemplo: o famoso “Ordenamento Jurídico”, tese do grande jurista Hans Kelsen, nos mostra como o povo deve se comunicar com a lei. Segundo o nosso ilustre austríaco, a legislação precisa se organizar de forma piramidal, assim, existem uma série de leis menores que formam o piso horizontal da pirâmide (as infraconstitucionais), submissas ao resto do ordenamento. A lei máxima (ponto culminante da pirâmide) é a constituição, onde não há leis tão práticas assim, o que existe é mais uma regra moral de funcionamento das instituições, e essa regra moral tem que advir dos valores culturais e éticos da sociedade.   
Como esse poder incorre a perda de legitimidade? Simples, quando o administrador da res publica perde a consciência do seu papel e ignora o que o povo pensa. Os recentes protestos ocorridos no nosso país são um exemplo claro do processo de ruptura do Estado Democrático. Sempre que há essa separação, vivemos tempos de grandes revoluções.
Algumas poucas vezes, esse processo não ocorre via tomada abrupta de poder (revolução), mas acontece de forma paulatina, como um parasita se infiltrando no organismo do poder. No segundo exemplo o sangue é o diálogo e a discriminação é a lei. São raras as exceções, algumas delas podemos ver no documentário: Off the Grid (Fora da Rede); nesse filme, o diretor Alexander Oey, viaja por cidades no interior dos Estados Unidos, para mostrar o modo de vida de algumas pequenas populações que sofreram grandes danos econômicos no crash de 2008. Muitos grupos chegaram até a criar uma economia paralela com moeda local.
Mas não vou me prender a esse exemplo, afinal, tudo o que os EUA fazem é bem feito. Prefiro um exemplo latino americano, fiquei em dúvida entre um brasileiro e um colombiano, Canudos e Medellín, respectivamente. Optei pelo colombiano porque também podemos discutir uma questão ética: a pena de morte.
No final dos anos 80, emergira em Medellín o maior narcotraficante da história: Pablo Escobar. Com um patrimônio pessoal bilionário, não se sabe ao certo o valor de mercado, a revista Forbes o listou como o sétimo homem mais rico do mundo. Pablo não tinha apenas dinheiro, tinha influência e apoio político, não o apoio dos políticos, mas apoio do povo que o elegeu para o congresso da Colômbia. Escobar construiu uma sociedade paralela, supriu demandas que o Estado jamais fora capaz: construiu casas populares, escolas, hospitais, milícias de segurança e até campos de futebol. Eu diria que ele praticou o crime de lavagem de moral, ou lavagem de cocaína. El patrón del mal, como era chamado, se tornou um verdadeiro representante, um líder, no final: um mártir. Sua personalidade foi cultuada, seu funeral lotou as ruas de Medellín.
Pablo Escobar definitivamente estruturou um Estado paralelo, mas como um parasita, e sua economia emergiu com base na exportação de toneladas de cocaína para a Europa e a América no Norte, inclusive controlou 80% do tráfico mundial.
Seu poder não era “institucional”, mas afinal, o que é: “legitimo”, “institucional” , “legal”? Será que é colocar a bunda gorda na cadeira do poder e usar terno e gravata? Só pode ser isso, pois duvido que algum governante da América Latina, hoje, seja tão legítimo quanto Pablo o foi. Muita gente o condena dizendo que ele foi cruel e matou muitas pessoas. Mas é isso mesmo: se você tem um poder estatal, é necessário criar leis e fazê-las funcionar, foi assim que o Cartel de Medellín operou, essa é a ética do crime organizado, uma ética quase sempre inexorável.
Não quero denegar os crimes que foram praticados contra os “human rights”, mas os próprios defensores dos “human rights”, praticam a pena de morte, mantém presos sob regime de tortura em Guantánamo, e são coniventes com a barbárie que é praticada no Oriente Médio, na África e em países da Ásia, afinal, há interesses econômicos em jogo, “apedrejar mulheres é uma questão cultural”. Dá pra entender por que falo que a democracia, no rigor da palavra, é uma máquina a serviço da barbárie?

A pergunta final é: o que é um governo legítimo? Ainda acho que é aquele que têm mais força militar, porque, a democracia é falha: nunca a alcançamos na sua real condição (como em Pablo Escobar), mas se chegamos perto, mostramos o que há de mais cruel no ser humano potencializado à grupo. 

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Útero de Vidro

Seja como marketing político, pessoal ou biotecnológico, o aborto entrou na discussão pública sobre ética e, em nenhum momento, dá espaço para outra problemática respirar. Como todo assunto que é ruminado até a exaustão, o aborto se tornou banal e barateado. Vou dar um exemplo claro: sabe quando escutamos alguém (geralmente algum “artista”, jornalista ou autoridade pública) vociferar a legalização, pois, segundo eles: “o aborto é um problema de saúde pública”? Essa afirmação é tão ridícula que chego a me perguntar se é um argumento, afinal, qual a relação entre uma coisa e outra? A consciência de que o aborto é uma questão de saúde, não implica em absolutamente nada no debate moral da coisa.
A primeira carta a ser posta na mesa, deveria ser, como diria meu amigo Fábio Ribeiro: “Os limites éticos do Estado”. Sim, nesse tipo de conflito sempre recorro aos iluministas e ao pensamento burguês de Estado. Autores como Rousseau, ou até mesmo Hobbes, são indeléveis quando falamos sobre a relação do indivíduo com o poder (governo); ambos marcam o advento de uma ideia de se pensar as instituições e os seus poderes. Depois surgiram outros caras, muitos deles são responsáveis pela criação de raízes ideológicas nos Estados Unidos, e arquitetaram o “liberalismo econômico”, mas esse liberalismo eclode com Rousseau e Hobbes, começa quando o ser humano ousa questionar o poder do Estado sobre o indivíduo (não é o caso de Hobbes, mas o seu pensamento é importante para a nossa compreensão).
Não importa se estamos falando de economia ou de comportamento, o pensamento liberal condena o governo quando ele, governo, ingere em práticas que não concernem à civilização. O que são práticas que não concernem à civilização? São aquelas que o cidadão que a pratica é o único a colher suas conseqüências, exemplo: usar drogas, sair pelado em público, se vestir de qualquer  forma, ter qualquer opinião política (até mesmo totalitárias), usar o cinto de segurança de forma facultativa (caso não haja outro passageiro no carro); e, no plano econômico, é a possibilidade de qualquer civil poder empreender seu negócio: isso desonera o Estado de uma série de atribuições legais, como recolhimento de impostos e aplicação de erário em serviços, quase sempre prestados sem nenhuma eficiência gerando desperdício de capital, prática muito comum em Estados contagiados pelo pensamento de esquerda (como o nosso). 
Essa introdução é importante para sabermos de onde vem o liberalismo: que é da burguesia iluminista, posteriormente herdado pela direita conservadora americana.
Voltemos a falar do aborto. É estranho, pelo menos a mim, ver pessoas que defendem a interrupção da gestação de forma mecânica, falarem sobre liberdades individuais, porque, muitas vezes, essas pessoas idolatram Lênin e Stálin. Pra você não é estranho eles se apoderarem do pensamento burguês? Mas a hipocrisia não nos cabe agora, afinal, ela almoça conosco todos os dias. O que nos interessa é a análise dessa apologia barata.
Você acha que o aborto é uma questão privada (como aqueles exemplos que citei acima)? Só se o feto não for um ser humano. Mas o que é um ser humano? Pra mim pouco importa, mas no momento em que o gameta masculino encontra o feminino, o Estado tem um novo cidadão. Algumas pessoas podem dizer que ainda não houve desenvolvimento, ou falar sobre anencéfalos, mas o que importa? Há seres humanos que vivem como vegetais, isso não nos o direito de matá-los, afinal, eles também estão sob a jurisdição estatal. O estado tem a obrigação ética de dar segurança ao feto, ainda mais sabendo da sua condição de fragilidade. A mãe pode simplesmente deixar o bebê num orfanato ou algo do tipo, e esse respaldo tem que ser do governo, sem prejuízo de nenhuma das partes.
Se a reflexão amadurece, chegamos ao ponto mais delicado do debate: o regime jurídico do aborto. Por exemplo: se matar o feto é ilegal, de acordo com meu próprio raciocínio, a mãe deve sofrer sanções equivalentes as de uma pessoa que comete homicídio?
Posso entrar em contradição, mas não concordo com esse argumento. Primeiro: porque não é uma questão geométrica: aqui dois mais dois não são quatro, estamos falando de vidas. Segundo: porque o dolo de uma pessoa que pratica, ou é conivente com o aborto, não é o mesmo de um homicida. Terceiro: um homicida representa um perigo social físico, e não acredito que quem pratica o aborto o represente.
É mais fácil abortar, essa é a conclusão. Raskolnikov (personagem de Dostoiévski) teria praticado um aborto na sua namorada com muito mais facilidade do que foi a assassinato daquela velha. E por qual razão é tão fácil abortar? Simples: não vemos a vida do feto em movimento, ele é quase abstrato, só existe no plano metafísico. Por esse motivo aconselhei minha irmã a tirar o seu filho há mais de quatro anos atrás.

Talvez, se conseguíssemos ver a vida que nasce latente dentro de uma mulher, jamais fossemos coniventes com o aborto, e essas mesmas mulheres seriam presas por cometer o crime mais cruel que se possa imaginar. Mas isso só aconteceria se os úteros fossem de vidro transparente, sendo assim, de vidro, veríamos que ali há fragilidade e cuidaríamos daquela vida como a coisa mais preciosa do universo. 

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Instagram


Meus dois mais recentes textos, A Mentira Anônima e Rhythm Is Our Business, se encontraram numa esquina. O diálogo culminou num diagnóstico do nosso tempo, não geral, mas bem específico. O primeiro deles discorria sobre a legitimação de comportamento, um verdadeiro pedantismo sobre psicanálise; o segundo, falava sobre o acumulo de experiências. Mas qual o ponto fixo de encontro dessas problemáticas? Já lhes digo. Antes disso quero falar sobre sucesso, seja ele qual for.
O estupendo Fernando Pessoa desabafara em um de seus geniais poemas, não recordo o nome (sou um vagabundo intelectual) o seguinte verso: “estou cansado de semi-deuses.” Quem não está? A coisa mais insuportável do mundo é reencontrar um amigo das antigas. Geralmente, se estiver na lama, ele vai contar um monte de mentiras; e se estiver por cima da carne seca, me perdoem o clichê, vai contar a verdade. Porém, a mentira do fracassado e a verdade do bem sucedido serão as mesmas: o sucesso. O amigo que não dispor de tanta destreza assim para mentir ou para ganhar dinheiro (quase sempre o meu caso) voltará para casa, arruinado pela inveja.
Ora essa, porque as pessoas têm que sempre contar vantagens? Por isso que digo que a inveja é uma forma sadismo: mesmo sabendo que é um sofrimento, queremos que o outro a tenha por nós.
É muito desconfortável encontrar uma pessoa melhor do que você, dá vontade de matá-la, mas quase sempre construímos um discurso embasado nos defeitos morais dessa pessoa para rebaixá-la. É como aquela história: “ele tem dinheiro, mas não tem caráter”, mas quem liga pra isso? Ninguém se importa com valores éticos na hora de conseguir uma grana, mas se não conseguimos, blasfemamos quem o fez. Um outro exemplo típico da coisa, mais contemporâneo e familiar a minha geração, é o funk, mais precisamente, o chamado: “funk ostentação”. Recentemente comecei a me perguntar a razão pela qual esse estilo incomoda tanto as pessoas. Cheguei a algumas conclusões: Primeiro, quase todas as pessoas são invejosas, elas sentem inveja até pelo mais ínfimo sucesso do vizinho, imagina só por caras que aparecem em clipes com: dinheiro, carros importados, casas de praia, correntes de ouro e mulheres gostosas. Segundo, motivo já citado acima, quando se tem inveja é necessário criar um argumento, geralmente moral, contra o seu alvo. Nesse caso, argumentos é o que não faltam: a música efetivamente é uma porcaria, e muitas vezes adversa a valores cinicamente impostos, por exemplo: apologia sistemática ao crime organizado. Observação: não faço juízo de valor, portanto não pense que estou formulando criticas.


Agora sim, volto ao ponto de encontro dos meus ensaios. No meu segundo texto (Rhythm Is Our Business), dizia eu que o ser humano busca experiências extremas, acho que isso já é o bastante. No primeiro, conjeturei sobre legitimação de comportamento, mas necessariamente perante os olhos humanos. O intercurso é exatamente esse: também é preciso tornar legitima a sua experiência de intensidade. Se ninguém souber que viajei para um vilarejo no interior da Etiópia para observar o modo de vida de sua população, qual seria o sentido dessa aventura? E se eu for ao show de uma banda de rock sozinho (coisa que eu mesmo fiz no ano passado)? Não há significado, ou só há pra você, o que não é muita coisa. Mas agora a tecnologia está ao nosso favor, e, é aí que o estado de zumbi da minha geração se aflora. Não há nada que um Instagram não resolva. Eu nem sabia o que era esse diabo, mas de tanto ouvir falarem sobre, fiquei sabendo que é um troço no qual você tira fotos e as envia de forma instantânea ao seu perfil nas redes sociais. A conclusão já é evidente: você tem uma experiência, como no meu segundo texto, e a legitima, como no primeiro. Você vai à um restaurante chique com a sua namorada, em seguida posta uma foto, assim todos os seus amigos morrem de inveja.

Rhythm Is Our Business


A observação de algumas expressões vendidas no entretenimento mainstream (filmes, músicas, literatura, novela, etc.) me causou uma impressão estranha: o que é comercializável, em matéria de cultura, deve ser narrado em compassos extremamente rápidos em detrimento da busca pelo visceral, pelo conhecimento de um fato pequeno, cotidiano, aparentemente desprezível; naquele tipo de produção, mainstream, só importa o que é objetivo.
Observem as novelas, sempre o mesmo enredo: de manhã: café da manhã para discutir a relação familiar, claro; de tarde fatos importantes no desenvolvimento da trama; de noite: jantares românticos, em família ou com os sócios, às vezes um homicídio básico, coisas comuns na vida de qualquer pessoa. Nos filmes é a mesma inaudita criatividade. Na música, é introdução, andamento, refrão, andamento, refrão e fim. É uma ordem medíocre que preza pela narrativa rápida, afinal, ela é um engodo muito mais eficiente.
Como são raros cineastas como um Ugo Giorgetti, seu tempo de narração é sempre dentro de períodos curtos, nada de longas histórias de dez ou vinte anos, no máximo dez ou vinte horas, mas que revelam um olhar sempre muito perspicaz sobre as coisas, sucessos pequenos que constroem e destroem nossas vidas todos os dias. Como é instigante assistir um filme desses! Como a alma se eleva quando escuto um John Coltrane, ou um Shostakovich! Como são belos os pequenos acontecimentos cheios de espírito em Guimarães Rosa!  Mas essa é uma luta que já debutou perdida, não porque as pessoas são ignorantes e não sabem apreciar uma arte mais sofisticada, mas porque o modelo de narração da cultura de massa é insuperável, isso torna crível diante dos meus olhos, o fato de que há uma deliberação, muito inteligente, que faz com que haja consumidores para essa arte duvidosa.
A conclusão é a de que tudo deve ser abrangente e conciso, ou seja, denso, mas denso de fatos, não de qualidade. Isso é a história!
Comecei a pensar nisso quando me deparei com os filhos bastardos de Marx que berram nas ruas de São Paulo. Uma coisa admito compulsoriamente: eles estão fazendo história e a história é isso: um lixo travestido de estética. Quando lemos um livro de história, sempre pensamos em épocas efervescentes, cheias de acontecimentos a nível universal, mas se estamos presentes em um período como esses, saboreamos uma das experiências mais broxantes ao ser humano: a consciência de que tudo é banal e fútil.
Retornando à narração, os livros de história são como o entretenimento barato: narram os fatos de forma rápida e densa, para pensarmos que o ser humano sempre foi foda.
A diferença entre conhecer acontecimentos teoricamente e empiricamente, é a mesma de escutar uma partida de futebol pelo rádio e assisti-la ocularmente, seja na TV ou no campo: é uma disparidade sem régua que a meça.
Algo que já foi dito muitas vezes, mas é imprescindível repetir, é a inegável futilidade da vida: a vida é fútil, na maior parte do tempo sem graça, tributável, sem cor. A rotina não foge de nós, precisamos acordar, trabalhar, ir ao banheiro, almoçar, falar bom dia, ter hábitos. Eles, os hábitos, são a manutenção do corpo.
Nesse maldito tempo de felicidade universal, quem não coleciona experiências, entra em depressão, desperdiça a dádiva da existência. Ora, a vida tem que ser desperdiçada, como diria o Ponde: “sangramos para gerar”, isso é viver. Mas para os idiotas, viver é ir ao Playcenter, ao show do Metallica e encher a cara todo final de semana (esses são os idiotas farofeiros), ou viajar pela Europa, conhecer lugares exóticos, entrar em contato com outras culturas, quase um globo repórter (esses são os chiques), e o que os dois têm incomum é a negação sistemática de que a existência é vã, tanto que o clichê favorito deles é: “não viva em vão”. É uma busca frenética pelo intenso, aquele mesmo da narrativa do mainstream. Talvez seja esse o motivo de sucesso da arte comercial: ela faz o homem se sentir importante e capaz: capaz de mudar o mundo, de ter sensações extremas, de viver sempre inebriado pelo que é grande.
Sei lá, acho que às vezes é melhor meter a cara na bíblia. Ao menos ela me lembra que ainda sou humano, frágil como poeira e inútil como um ser que nasceu submisso a um Deus tirânico.

   

A Mentira Anônima


Toda experiência moral demanda legitimação, ao menos ao olhar de um cético, como eu (toda a crença, que outrora tive, acerca de um sistema de valor, seja ele político moderno ou religioso clássico, escorreu pelo ralo da minha pia como a sujeira dos pratos que nela lavo depois da janta). A virtude anônima é aquela que praticamos quando não há ninguém nos observando, e se não temos fé no sacro, ela perde quase todo seu valor. Gosto do termo “virtude”, ele me traz ao afeto o exercício moral pelo lado do “bem”, aquele mesmo que tantas vezes temos a impressão de praticar, quase sempre por vaidade, mas nunca admitimos.  Mas enfim, dizia eu: “quase todo seu valor”, mas não todo, afinal, quem não tem Deus caça com homem (péssimo trocadilho). Também dispomos da possibilidade de legitimar nosso comportamento diante dos olhos e ouvidos humanos: se somos heróis e ninguém sabe, logo não o somos. Na nossa sociedade, heróis são condecorados, recebem medalhas, tem méritos e são notórios: isso é legitimação. O bem praticado num beco escuro, recôndito, fechado, causa enorme agonia, afinal: as pessoas nunca o conhecerão.
A consciência do outro é a chave da compreensão do nosso modelo de relacionamento em grupo, sem o outro nada faz sentido, mas o outro não pode ser uma pedra, ele precisa pensar, admirar, invejar, saber quem sou eu e dar valor, negativo ou positivo, à minha personalidade. 
Isso se trata de um diálogo intertextual com Lacan e com a bossa nova, a música dizia (conjugo no passado, pois a bossa nova já não está entre nós): “é impossível ser feliz sozinho”, eu diria que é impossível ser de carne, osso e alma, sozinho. A condição humana de fragilidade sempre necessitou de uma associação, porém, não colocamos na conta os efeitos nefastos e vitais da construção do contrato social. Nefastos, porque, segundo o super-ego freudiano, acumulamos ódio e não suportamos o convívio. Vitais, pois somos como nossa fisiologia: precisamos do organismo funcionando em harmonia: o coração, o pulmão, as artérias, os rins, não passam de carne podre se não formarem um conjunto que opera para manter um corpo vivo; com a civilização é mesma coisa: se o outro não existir, você é carne podre e morta.
Claro que não quero dizer algo no sentido de que sejamos altruístas, solidários, bonzinhos; também não pretendo espalhar a enorme mentira de que o amor ao próximo é necessário, antes disso, minha impressão é a de que nossa essência é trágica, a moral só amadurece onde há sofrimento, dor, agonia, angústia, e o outro, claro. O outro é necessário, pois ele nos torna humanos.
O grande Nietzsche dizia que o filósofo precisa ser um “eremita”, acho que há um pequeno equívoco: se você é um pensador incipiente não se afaste das pessoas, pois sua relação com elas é preciosa e não durará muito tempo. Não penso que o filósofo deva ser um eremita, mas todo filósofo sério se torna um cara hermético por instinto, ainda mais em tempos como os nossos, onde as pessoas que pisam sobre a superfície da terra são cada vez mais insuportáveis e babacas.   
Qualquer um desses imbecis, lendo esse texto, quando citei Rousseau, imaginaria que comparei a sociedade à um organismo humano, pela capacidade que tem, a sociedade, de produzir riqueza e tecnologia.
Talvez eles, até certo ponto, estejam certos, mas não integralmente, afinal: riqueza e tecnologia produzem inveja, cobiça, ganância, humilhação; de uma certa forma há uma fratura causada nas estruturas internas do indivíduo, mas não é uma questão puramente material, antes de tudo é espiritual.

Enfim, só gostaria de finalizar parafraseando o raro Luiz Felipe Ponde, citado acima sem crédito, pois como diria Brecht: “as ideias dele são tão boas que poderiam ser minhas”. No seu livro de ensaios (um dos melhores da filosofia do século XX) “Contra um mundo melhor”, Ponde diz que “reza para que o mundo tenha paciência com sua impaciência”. É exatamente o que me resta depois de escutar uma conversa no metrô, no trem ou no ônibus. Que Deus tenha piedade da nossa alma.