A tradição religiosa pode ser um espelho: para vermos nosso
reflexo basta tirar a política da frente, não há ciência humana que vá tão ao
fundo da psicologia e da filosofia do indivíduo. Se Deus está em tudo,
inclusive em mim, minha moral sai do discurso público e entra no que há de mais
visceral na alma.
O que me seduz nas religiões abraâmicas é o constante
diálogo com o interno. É demasiado arrogante achar que todos os problemas estão
fora de nós, seres tão sujos. É isso o que a bíblia quis dizer com a humildade
dos eleitos. Só eles verão a Deus.
Antes de tudo, é pertinente deixar claro que não pratico a
religião liturgicamente e nem sinto tal necessidade. Não possuo nenhum tipo de
ritual de conexão com o transcendental e nem peço perdão por minhas anátemas
antes de dormir.
Meu encanto pela religião emana de uma sensualidade
filosófica que me instigou a pensar na problemática depois da leitura de
verdadeiros “hereges”.
A impressão pode causar um mal-estar nos adeptos do
proselitismo racional, mas a tradição religiosa, especialmente a cristã, é o
elemento intertextual do que há de mais sofisticado na história da literatura
ocidental.
A filosofia cristã entende o ser humano na sua exatidão:
como ser interno, que precisa, antes de tudo, encontrar a ordem que há no
espírito, contrariamente ao sectarismo ideológico, esse nos lega que o caráter
do homem pode ser esculpido no meio social.
Autores como Shakespeare, Goethe, Proust, James Joyce,
dentre tantos outros, Dostoiévski talvez seja o mais estudado, dialogam
integralmente utilizando a linguagem dos sentimentos, impulsos e tomada de
decisões depois de muito conflito moral. Há uma correlação indissociável com a
bíblia e suas lições éticas, mas não de forma didática, pois, aqui, na
literatura, o interesse é arrancar as almas e não construí-las.
Pensar a ideia de Deus pode alienar? Evidente que sim, mas
imaginá-lo com o “coração aberto” (termo cristão) pode ser muito pedagógico e
até mesmo um exercício no caminho da depressão profunda. Deus é tudo, sem
exceções! Não adianta justificá-lo ou tentar a insurreição: você não passa de
pó e sua arrogância é a pressuposição, sustentada na idolatria, de que há uma
auto-suficiência. Deus é muito grande para caber na nossa cabeça: estamos
habituados a medidas, o infinito é uma linguagem eternamente incognoscível a
seres que só conhecem o tempo e o espaço de suas existências, mas quando sentimos que Deus é tudo
isso, caímos de joelho diante de um ser tirânico que, no fundo, também é nossa
fisiologia e nosso pensamento.
Um efeito enviesado da obra dostoiévskiana é a interpretação
de que o nosso gênio de São Petersburgo, impôs um questionamento que deixa a
ciência racional numa sinuca de bico: “Se Deus não existe, tudo é possível”? Já
descobriremos por que as aspas não abrangem a interrogação. Essa frase é de uma
reflexão sem precedente na história da literatura universal, pelo menos não de
forma tão incisiva. Afinal, sabemos que uma legitimação suprema é a base da ética.
Parece que o ser humano nunca foi autoconfiante ao ponto de achar que as coisas
que dizemos e pensamos é verdade, então, corremos sempre atrás de mestres e
messias, idolatramos quem nos mostra por onde caminhar e precisamos do
parâmetro “certo” e “errado”.
Raskolnikóv, personagem de “Crime e Castigo”, ou Ivan
Karamazov, personagem de “Irmãos Karamazov”, eram daqueles ímpios que não
acreditam nem na própria sombra. Raskolnikóv santificava Napoleão por seus
feitos que beiravam o desumano e os tornava grande e destemido. O jovem
agoniado se viu compelido a praticar um crime como prova de seu potencial ao
sucesso e como o primeiro passo: que seria derrubar a parede da moral que
separa os reis da gentalha. O que nosso herói não esperava era a culpa cortante
que atravessara sua alma. Enfim, Raskolnikóv carregou o ônus da prova: a prova
de que nem tudo é possível. Se o próprio Dostoiévski disse: “Se Deus não
existe, tudo é possível”, deparamos com o espanto imediato, esse foi motivo da
minha interrogação fora das aspas, afinal: tudo é possível? Como explicar o
impossível? Deus não é uma ideia descabida, é algo a ser pensado sem
brincadeiras e com um olhar cético ao nosso próprio ceticismo. Não sou agnóstico,
mas admito que não consigo pensar em Deus.
Como diria o utopista Thomas Morus: “há homens que não
acreditam em Deus pelo medo do pecado que lhes é constante”.
Enfim amigos, menos Focault e mais Eclesiastes, menos Marx e
mais Dostoiévski!
Nenhum comentário:
Postar um comentário