Toda experiência moral demanda legitimação, ao menos ao
olhar de um cético, como eu (toda a crença, que outrora tive, acerca de um
sistema de valor, seja ele político moderno ou religioso clássico, escorreu
pelo ralo da minha pia como a sujeira dos pratos que nela lavo depois da janta).
A virtude anônima é aquela que praticamos quando não há ninguém nos observando,
e se não temos fé no sacro, ela perde quase todo seu valor. Gosto do termo
“virtude”, ele me traz ao afeto o exercício moral pelo lado do “bem”, aquele
mesmo que tantas vezes temos a impressão de praticar, quase sempre por vaidade,
mas nunca admitimos. Mas enfim, dizia eu:
“quase todo seu valor”, mas não todo, afinal, quem não tem Deus caça com homem
(péssimo trocadilho). Também dispomos da possibilidade de legitimar nosso comportamento
diante dos olhos e ouvidos humanos: se somos heróis e ninguém sabe, logo não o
somos. Na nossa sociedade, heróis são condecorados, recebem medalhas, tem
méritos e são notórios: isso é legitimação. O bem praticado num beco escuro,
recôndito, fechado, causa enorme agonia, afinal: as pessoas nunca o conhecerão.
A consciência do outro é a chave da compreensão do nosso
modelo de relacionamento em grupo, sem o outro nada faz sentido, mas o outro
não pode ser uma pedra, ele precisa pensar, admirar, invejar, saber quem sou eu
e dar valor, negativo ou positivo, à minha personalidade.
Isso se trata de um diálogo intertextual com Lacan e com a
bossa nova, a música dizia (conjugo no passado, pois a bossa nova já não está
entre nós): “é impossível ser feliz sozinho”, eu diria que é impossível ser de
carne, osso e alma, sozinho. A condição humana de fragilidade sempre necessitou
de uma associação, porém, não colocamos na conta os efeitos nefastos e vitais da
construção do contrato social. Nefastos, porque, segundo o super-ego freudiano,
acumulamos ódio e não suportamos o convívio. Vitais, pois somos como nossa
fisiologia: precisamos do organismo funcionando em harmonia: o coração, o
pulmão, as artérias, os rins, não passam de carne podre se não formarem um
conjunto que opera para manter um corpo vivo; com a civilização é mesma coisa:
se o outro não existir, você é carne podre e morta.
Claro que não quero dizer algo no sentido de que sejamos
altruístas, solidários, bonzinhos; também não pretendo espalhar a enorme
mentira de que o amor ao próximo é necessário, antes disso, minha impressão é a
de que nossa essência é trágica, a moral só amadurece onde há sofrimento, dor,
agonia, angústia, e o outro, claro. O outro é necessário, pois ele nos torna
humanos.
O grande Nietzsche dizia que o filósofo precisa ser um
“eremita”, acho que há um pequeno equívoco: se você é um pensador incipiente
não se afaste das pessoas, pois sua relação com elas é preciosa e não durará muito
tempo. Não penso que o filósofo deva ser um eremita, mas todo filósofo sério se
torna um cara hermético por instinto, ainda mais em tempos como os nossos, onde
as pessoas que pisam sobre a superfície da terra são cada vez mais
insuportáveis e babacas.
Qualquer um desses imbecis, lendo esse texto, quando citei
Rousseau, imaginaria que comparei a sociedade à um organismo humano, pela
capacidade que tem, a sociedade, de produzir riqueza e tecnologia.
Talvez eles, até certo ponto, estejam certos, mas não
integralmente, afinal: riqueza e tecnologia produzem inveja, cobiça, ganância,
humilhação; de uma certa forma há uma fratura causada nas estruturas internas
do indivíduo, mas não é uma questão puramente material, antes de tudo é
espiritual.
Enfim, só gostaria de finalizar parafraseando o raro Luiz
Felipe Ponde, citado acima sem crédito, pois como diria Brecht: “as ideias dele
são tão boas que poderiam ser minhas”. No seu livro de ensaios (um dos melhores
da filosofia do século XX) “Contra um mundo melhor”, Ponde diz que “reza para
que o mundo tenha paciência com sua impaciência”. É exatamente o que me resta
depois de escutar uma conversa no metrô, no trem ou no ônibus. Que Deus tenha
piedade da nossa alma.
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